EDUCAÇÃO| A PALAVRA QUE SEPARA, QUANDO O SABER SE AFASTA DO POVO
A Palavra que Separa: Quando o Saber se Afasta do Povo
Railton Tomaz Fernandes - Antropólogo
Em português acadêmico: "Os circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes quanto maior a distância social do objeto consagrado."
Como nosso povo fala: "Santo de casa não obra milagre"
Em qual idioma devemos nos comunicar com nossos povos?!
No calor de uma roda de conversa na feira livre de São Sebastião de Lagoa de Roça - PB, ouvi outro dia alguém lamentar: “Por que esses tais doutores falam tanto em ‘capital simbólico’ e ‘dominação cultural’, se o que a gente entende mesmo é ‘quem não é visto não é lembrado’?” Foi aí que me dei conta de como a linguagem erudita, por vezes, ergue muros invisíveis entre o “saber acadêmico” e a “sabedoria de rua”.
Pierre Bourdieu já nos alertava, em Language and Symbolic Power, que as formas de reconhecimento social — os “circuitos de consagração” — só funcionam de fato quando há uma grande distância entre quem consagra e o objeto consagrado . Em outras palavras, quanto mais rebuscado o jargão, mais eficaz se torna a distinção entre “os que sabem” e “os que não sabem”.
Esse fenômeno, que Bourdieu chamou de violência simbólica, não se exerce com gritos ou correntes, mas com palavras que impõem categorias de pensamento. Quem não domina o vocabulário técnico acaba por aceitar, muitas vezes sem perceber, que o mundo deve ser pensado segundo as regras de um grupo fechado. Eis o cerne da dominação: não barrar fisicamente a entrada, mas fazer com que o outro não ouse nem tentar entrar.
Contrastando com esse cenário, os ditados populares desempenham papel inverso: sintetizam em frases curtas, metáforas e rimas o conhecimento acumulado por gerações. São provérbios como “quem não é visto não é lembrado” ou “quem não arrisca, não petisca” — expressões que, segundo especialistas, transmitem conselhos e experiências de forma simples e direta. A força dessas sentenças está justamente em sua acessibilidade: não exigem glossário, nem preparo prévio.
Quando dizemos “Santo de casa não faz milagre”, estamos, na prática, resumindo em três palavras a crítica de Bourdieu sobre distância social e prestígio. Por que, então, insistimos em envolver ideias tão básicas em discursos tão eruditos que, no fim, poucos conseguem acompanhar? Talvez por medo de parecer “pouco eruditos”, mas o resultado é claro: criamos uma casta de especialistas que fala para si mesma, enquanto o restante do povo assiste de fora.
É hora de inverter o jogo. A comunicação democrática exige que políticos, acadêmicos e ativistas aprendam a traduzir seus termos — não para empobrecer o conteúdo, mas para multiplicar seu alcance. Isso significa:
-
Adaptar conceitos complexos a analogias populares.
-
Valorizar a voz de quem aprendeu “lendo o mundo” antes de qualquer livro.
-
Construir pontes entre o rigor teórico e o cotidiano das pessoas.
Referências:
Bourdieu, Pierre. "Capital symbolique et classes socials". L'Arc,72, 1978, pp. 13-
Bourdieu, Pierre. Langage et pouvoir symbolique. Paris: Seuil,
Bourdieu, Pierre. La noblesse d'État. Grandes écoles et esprit de corps: Parte III;
Comentários
Postar um comentário